<i>A Literatura Feliz</i>

Domingos Lobo

E ninguém conta a história do menino/que não teve
nem magos a adorá-lo,/nem vacas a aquecê-lo,/

mas que há-de ter/muitos Reis da Judeia a persegui-lo.1

O nosso neo-realismo trouxe para a literatura uma visão pungente e denunciadora, política e socialmente enquadrada, do mundo da infância. Esse complexo universo era em 1930/40 ignorado enquanto sujeito de uma determinada realidade histórica, nos meios literários e políticos da Europa, com particular manha e violência no Portugal fascista saído do 28 de Maio de 1926.

Na década de quarenta, o mundo rural absorvia cerca de 50 por cento da população activa, cabendo parte substancial dessa actividade às mulheres e crianças. O trabalho infantil era utilizado e explorado em grande escala, igualmente na indústria, na pesca, nas minas, na construção civil e nos serviços (como paquetes e marçanos, p.ex.), como forma de aliviar a fome e a miséria do agregado familiar e tornar menos penosas as infra-humanas condições de vida impostas ao proletariado.

Com níveis de analfabetismo a rondar os 100 por cento2 e oriundas de famílias pobres das zonas mais deprimidas do País, ou de latifúndio, os jovens cedo começavam a percorrer os duros caminhos do trabalho, obrigados a crescer num mundo hostil que os obrigava, cedo de mais e sem instrumentos de salvaguarda, a esquecer que ainda eram meninos de brincar, de estudar, de descobrir a vida e, ao invés, os forçavam a ser homens.

A literatura neo-realista, atenta aos fenómenos sociais que impediam o desenvolvimento e a dignidade dos mais desfavorecidos, não podia, naturalmente, ignorar essa vertente da opressão e procedeu, com assinalável capacidade discursiva e dialéctica, em textos hoje canónicos, à análise ficcionada de um flagelo social que arrastou para a ignorância e para a exploração milhares de crianças, condição sistémica que se tornou regra no período que medeia entre a Guerra Civil de Espanha e os anos da 2.ª. Guerra Mundial.

A primeira abordagem séria destes fenómenos sociais, da condição da criança pobre num mundo pautado pela usura, em que os infantes são sujeitos principais da acção, foi encetada por Soeiro Pereira Gomes, com o conto Os Miúdos da Minha Rua (1939); Esteiros,(1941), essa obra-prima da nossa literatura, e alguns contos incluídos em Refúgio Perdido. A este fulgor inicial, outros textos se seguiram no mesmo espaço temporal: Rampagodos (1941), de Joaquim Ferrer; Fanga (1943), Histórias Afluentes de Alves Redol; Aldeia Nova (1943), de Manuel da Fonseca; Vagão J, (1946), de Vergílio Ferreira; Cinco Reis de Gente (1948), de Aquilino Ribeiro.

De igual modo, a adolescência é tratada, não apenas por autores da 1.ª. vaga neo-realista, como José Marmelo e Silva, nos romances Sedução (1937) e Adolescente (1948); Cerromaior (1943) de Manuel da Fonseca, mas igualmente outros autores próximos do neo-realismo, publicaram nas décadas de 1950/60, romances em que as personagens infantis, e a caracterização específica no seu meio social e político, têm expressão nos seus textos: Páscoa Feliz, de José Rodrigues Miguéis; Constantino – Guardador de Vacas e de Sonhos, de Redol; Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira; Maina Mendes, de Maria Velho da Costa; Bonecos de Luz, de Romeu Correia; A Porta dos Limites e As Aves da Madrugada, de Urbano Tavares Rodrigues; Tanta Gente, Mariana, de Maria Judite de Carvalho (autora a merecer redescoberta); Voltar Atrás Para Quê? de Irene Lisboa.

Também na poesia, a criança foi tema recorrente nos poetas ligados ao Novo Cancioneiro: Fernando Namora, Mário Dionísio (do qual se comemora este ano o centenário do nascimento), Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Manuel da Fonseca (os seus modelares, de língua, ritmo e pureza poética, Poemas da Infância), Carlos de Oliveira e Sidónio Muralha.

A partir dos anos 1960, este segmento temático da literatura deixa de ter como alvo um público mais adulto, começando a preocupa-se com a formação e conquista da própria criança, tendo-a como alvo e leitor privilegiado. Aparecem os primeiros livros lúdico/didácticos cuja ideia central seria a de construir uma literatura que expressasse convenções muito peculiares de ficcionalidade, para o leitor jovem, como refere Aguiar e Silva, acrescentando que esse género literário deve configurar um mundo contrafactual, onde estão derrogadas todas as leis, regras e convenções do mundo empírico e da vida humana, salvo o respeitante à superioridade intrínseca do bem sobre o mal, do amor sobre o ódio e da justiça sobre a injustiça.

Neste contexto, refiro alguns títulos: A Vida Mágica da Sementinha – Uma Breve História do Trigo, de Alves Redol; A Menina Gotinha de Água, de Papiniano Carlos (um dos mais lidos e belos livros para a infância); O Cavalo do Lenço Amarelo é Perigoso, de Mário Castrim; O Palhaço Verde, de Matilde Rosa Araújo; Rosa, Minha Irmã Rosa, de Alice Vieira; O Pássaro da Cabeça, de Manuel António Pina; Uma Estrela na Mão, de Fernando Miguel Bernardes.

Não será por escassez de bons livros e de grandes autores que a literatura para a infância e juventude não chega aos leitores/receptores a que se destina: sabemos que as seduções do audiovisual e o avanço tecnológico limitam a apetência pela leitura e sua plena fruição. Mas sabemos que é na infância que se aprende a vê-la, a conhecer os rumos, as ásperas, as lídimas palavras; na infância tudo se apreende, é desse tronco que desperta o homem. Cabe aos pais, nesta área fundamental do desenvolvimento cognitivo e sensorial da criança, criar nela hábitos de leitura continuados e consequentes.

Estes meses de chuva e frio será época propícia para comprar, ou reler alguns dos mais recentes títulos desse Literatura Feliz. Aqui vos deixo algumas sugestões:

Era uma vez um rei que teve um sonho – Os Lusíadas contado às crianças, de Leonoreta Leitão e José Fragateiro – Dinalivo; Romance do 25 de Abril, de João Pedro Mésseder e Alex Gozblau – Caminho; O Ápis, de Mário Sacramento e Roberto Machado – AJHLP3; A Arca do É (ou a versão vegetariana da Arca de Noé), de Ana Margarida de Carvalho e Sérgio Marques – Teorema; Sílvio – Guardador de Ventos, de Francisco Duarte Mangas e Madalena Moniz Caminho.

Uma mão cheia de livros que nos trazem o onírico e o real, que nos transmitem uma visão serena, apaziguadora e vital da nossa condição. Para os putos, capitães da malta, estes apetrechos saídos do imaginário destes autores, todos exímios manipuladores de prodígios, são água de puríssima fonte: ensina-os a reter das palavras o que nelas existe de essência e substância; o lúdico, o lírico, a capacidade de urdir, solidariamente, os linimentos do sonho – instrumentos fecundos de aprender a caminhar pela vida, a torná-la melhor e justa.

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1 Álvaro Feijó, «Natal», In Os Poemas de Álvaro Feijó, Novo Cancioneiro, 1941

2 A situação da criança portuguesa entre finais da década de 30 e os anos 60 do século XX prova que foram diversificados os destinos da infância no Mundo Ocidental. (...) a política do Estado Novo ficava aquém dos países ocidentais: não garantia um apoio digno a filhos de famílias carenciadas; não viabilizava o acesso a uma escolaridade elementar de molde a que ela se tornasse efectiva; permitia a exploração laboral da infância. in Sobressalto e Espanto, de Violante F. Magalhães, p. 56, Campo da Comunicação, Lisboa, 2009

3 Edição da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com nota introdutória de Francisco Duarte Mangas

– Bibliografia: Sobressalto e Espanto – Narrativas Literárias sobre e para a Infância, no Neo-Realismo Português, de Violante F. Magalhães – Campo da Comunicação




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